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Dois de nós.

Publicado: 25/09/2010 em Crônicas
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You and I have memories
longer than the road that
stretches out ahead.
The Beatles – Two of us

Quando acordei tentei abraçá-la, mas pareceu tão antinatural que era como se cada palavra que havíamos trocado noite passada fosse apenas um conjunto de motivos para que acreditássemos que valia e pena continuar com aquilo. Havia tantas coisas a serem ditas e nós fingíamos que elas não existiam para que tudo continuasse bem, sem sabermos que era exatamente por não falarmos sobre o que destruíamos que destruiríamos o pouco que ainda existia.

Levantei certo do que temia e ela se cobriu, enquanto eu me vestia para ir embora sem me despedir, sem qualquer carinho, enquanto nosso futuro ficava para trás. Quando caminhava até o carro meu telefone tocou. Atendi e pelo seu tom de voz eu já sabia e não pensei duas vezes: entrei no carro e segui para sua casa, fugindo da cama a qual não voltaria e da rotina cretina que me esperava pelo resto do dia.

Quando entrei na sua rua ela já me esperava do lado de fora da casa. Parei, ela pulou dentro do carro e me cumprimentou, sem olhar para mim, com um “e aí?” tão natural que se ao menos uma vez eu ouvisse um “olá, como está?” eu perguntaria se havia algo errado. Quer dizer, eu sabia que havia algo errado, mas não era sobre esse tipo de coisa errada que estou falando. Assim que a porta bateu acelerei e sai o mais rápido que pude. Eu sabia que nos sentíamos perdidos e que buscávamos qualquer novo lugar lá na frente. Dois de nós.

Depois de poucos minutos, um silêncio de horas, e vários olhares meus enquanto ela, com o banco inclinado e os pés apoiados na janela, fitava fixamente pontos que ficavam para trás lá fora, perguntei se queria conversar sobre o que havia acontecido. Ela disse que não porque era a mesma merda de sempre. Eu não sabia qual era a mesma merda de sempre, ela nunca me dizia, e era sempre assim, então não insisti.

Ela abriu a bolsa e acendeu um cigarro. Fiquei puto e ela sabia disso. Essa era a forma de ela me agradecer: de lado, calada e fumando um maldito cigarro. Falei para ela deixar de ser babaca e jogar fora. Ela não deu atenção. Eu fiquei mais puto. Ela continuou fumando.

Chegamos a um posto de gasolina e enquanto eu pedia para abastecer, ela pediu grana para umas cervejas e cigarro. Voltou com três cervejas, tomando uma rapidamente para não dar tempo das outras esquentarem. Saímos novamente e ela pôs uma cerveja entre minhas pernas, falando para eu beber. Pensei em perguntar se ela era estúpida, mas antes que eu falasse qualquer coisa, ela falou para eu me fuder e tomar logo a merda da cerveja. Comecei a beber então a merda da cerveja enquanto ela acendia outro cigarro, fazendo com que eu sentisse vontade de parar o carro e mandá-la saltar fora, idéia que me fugiu dois segundos depois porque eu nunca faria isso com ela, não depois de tudo o que passamos juntos.

Antes que eu terminasse minha cerveja, ela já havia terminado as suas e a tomou de mim, bebendo de uma só vez o restante. Ela sabia com eu estava me sentindo e, olhando para frente, pediu que eu deixasse para lá o fato de ela ser uma cretina. Eu falei que ela não era cretina, mas que estava agindo que nem uma. Ela se enfiou no banco e passou novamente a olhar o caminho que passava pela janela. Eu disse então que a desculpava e a adorava, enquanto ela, sem olhar para mim, disse que eu era uma bicha por falar aquilo. Olhei para ela e percebi que ela ensaiou um sorriso, o que fez com que eu também sorrisse.

Olhei para sua perna e percebi na meia branca que usava até abaixo da saia um listra vermelha que se formava. Disse o que via e ela se cobriu rapidamente, o que me assustou. Perguntei o que era aquilo e ela não me disse. Eu percebi o que era, já havia visto aquilo em outras pessoas, mas não sabia como agir. Não pensei que as coisas estavam tão ruins assim. Será que eu estava tão focado em me sentir bem falando sobre meus problemas e achando normal ela não querer falar sobre si que fui negligente ao não forçá-la em dizer como se sentia, ou sobre o que fazia, ou pelo que passava?

Parei o carro de uma vez, fazendo com que ela sentasse e olhasse para mim assustada. Perguntei o que tinha acontecido e ela não disse nada, apenas fitou seus próprios pés. Bati no volante e perguntei que merda estava acontecendo com ela. Baixinho ela falou que ele a machucava. Fiquei completamente atordoado. Apesar de saber a resposta, mesmo assim perguntei quem a machucava. Ela respondeu que seu pai a machucava. Por um segundo eu me vi tomado de raiva não com quem lhe fazia mal, mas com ela por não me ter contado antes sobre isso, mas logo eu deixei isso de lado e pensei em dizer algo que pudesse de alguma forma fazer algum bem a ela, mas não havia qualquer coisa que pudesse ser dita.

Ficamos um tempo parados, com ela ainda fitando seus pés enquanto eu olhava para o volante. Perguntei por que ela fazia aquilo e ela não me respondeu nada. Perguntei novamente e ela continuou em silêncio. Olhei para ela e segurei sua mão, esperando que ela a afastasse, o que não aconteceu e me surpreendeu, e perguntei novamente por que ela fazia aquilo. Ela então afastou minha mão bruscamente e antes que eu pudesse dizer algo ela abriu a porta do carro e saiu correndo pelo acostamento. Soltei o cinto o mais rápido que pude e corri atrás dela. Quando a alcancei a segurei pelos braços e ela tentou se soltar, com a cara tomada de ódio ao olhar para mim. Falei para ela ter calma e ela gritou que eu não tinha o direito de perguntar sobre qualquer coisa a ela. Falei que eu tinha sim o direito e ela me perguntou por qual motivo eu só passava a me preocupar agora, se eu nunca havia me preocupado antes. Respondi que me preocupava sim e que havia perguntado milhares de vezes sobre como ela se sentia ou o que tinha acontecido, e que ela nunca respondia. Ela então disse que queria sim falar, mas que nunca era fácil para ela. Disse ainda que eu perguntava uma vez e na negação que seguia eu não insistia, porque eu realmente não estava interessado em escutar, pois eu só pensava em mim mesmo.

Aquilo acabou comigo porque era verdade. Eu me senti cheio de culpa, tanto que nem consegui olhar novamente para seu rosto, mas sabia que ela olhava para mim, colhendo seu próprio mérito ao me atingir daquela maneira. Ela então puxou forte seus braços e caminhou até o carro. Quando voltei, ela estava novamente sentada no banco inclinado, olhando pela janela pelo caminho que agora parecia ter parado para sempre. Eu entrei, pus o cinto e saí novamente, sabendo que tudo o que já havíamos sido um dia nunca mais seria o mesmo.

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