Olhe aqui, preste atenção
Essa é a nossa canção…
Roberto Carlos – Nossa canção
Choveu igual ao dia em que ela nasceu. Não vi apenas como coincidência, mas não fiquei pensando em qual era o significado. Eu não pensei nisso, mas com certeza ele pensou, afinal, ele sempre pensa muito sobre essas coisas. “Choveu quando ela nasceu”. Eu sorri e passei meu braço em volta do dele.
Nós tivemos outros dois filhos, mais velhos, e os dois estavam lá, com suas esposas e nossos netos. As crianças brincavam o tempo todo. Elas faziam muito barulho, e como agora as coisas estavam muito mais silenciosas, foi bom ter novamente as crianças gritando, gente conversando… O barulho era tão grande quanto o dela passando pela porta de entrada e gritando por nós. Depois que os meninos casaram, ela continuou preenchendo cada canto da casa.
Ela sempre foi a garotinha do papai. Talvez por isso tenha sido tão dolorido para ele o primeiro dia de aula dela. Ela não queria ir, nada mais comum. Ele tentou conversar, dizendo que seria bom, mas ela não dava atenção. Quando chegamos à escola, ele pediu que ela saísse do carro e ela disse que não. Ele então levantou, foi até o banco de trás e falou firme que ela saísse. Ela começou a chorar e pediu que ele não a levasse. Em parte achei a cena engraçada, vi como birra. Mas ela era minha garotinha também, e aquilo me doeu um pouco. Ele soltou o cinto dela e ela começou a chorar, a todo pulmão. Os dois foram caminhando até o portão de entrada, os passinhos ligeiros, tentando acompanhar os passos do pai, olhando para ele com o rostinho cheio de lágrimas. A professora a recebeu e segurou seus braços, enquanto ela tentava se soltar para correr atrás do pai, que não olhou nenhuma vez para trás. Ele não queria que ela o visse com lágrimas nos olhos. Quando chegou ao carro, sentou ao meu lado e começou a chorar. Eu pensei que era apenas uma reação por tê-la visto chorar, mas então eu percebi o que aquilo significava: daquele momento em diante, ele não estaria para sempre ao seu lado para defendê-la, mas também sabia que era preciso que aquilo acontecesse.
No fim da manhã fui buscá-la e ela ainda estava com aquele biquinho de choro que ela sempre teve. O pai queria ter ido, mas não podia por conta do trabalho. Assim que cheguei percebi nos olhinhos dela, enquanto procuravam por ele, que ela estava muito mais triste agora porque não poderia correr e pular nas pernas dele e chorar novamente, mesmo que ficasse brigando e reclamando por ter ficado sozinha.
Quando chegamos, ela ficou olhando pela porta, esperando-o chegar. Assim que viu seu carro, correu para o sofá e ficou sentada, com um bico imenso vermelho e os bracinhos cruzados. Ele entrou e perguntou por ela e eu mostrei onde ela estava. Sentou ao seu lado e perguntou se estava tudo bem. Apenas silêncio. Ele disse “Diga querida, como foi o colégio?”. Ela então o abraçou e começou a chorar, perguntando por que ele havia ido embora. Ele apenas a abraçou de volta. “Desculpa”.
E assim nossa garotinha foi crescendo. Uma das coisas que mais gosto de lembrar é de como ela gostava de ficar dançando nos pés dele. Uma cena que toda família passa e que sempre me alegrava muito. Acho que é porque eu a via tão segura, tão feliz. Os três sorrindo.
E foi assim durante todo o tempo, até que seus pés ficaram grandes demais e os pés do seu pai ficaram cansados demais para que as coisas não se alterassem. Mas ele não estava cansado o bastante no dia em que ela chegou do colégio, agora já com treze anos, chorando porque o garoto que ela gostava não gostava mais dela. Eles ficaram sentados por muito tempo enquanto ela chorava. Ele com os braços em volta dela, dizendo que ficaria tudo bem. E eu o vi chorando pela segunda vez. E eu percebi. Percebi que ele sabia que além de não poder mais estar para sempre ao seu lado para defendê-la, chegaria o dia em que ele também deixaria de ser o homem mais importante da sua vida.
Como eu disse, quando nossos filhos saíram, a casa ainda parecia cheia devido a seu jeito de ser, até que chegou o dia de ela também partir. Apareceu uma ótima oportunidade de emprego em outro estado, algo realmente bom. No começo eu me opus, não queria que a minha filhinha fosse embora para tão longe, mas seu pai, com uma calma que eu nunca veria em mim mesma, apoiou-a e disse que ela deveria se agarrar à oportunidade.
O período entre ela decidir que iria e o dia de ela realmente ir foram muito bons. O mundo éramos nós três. Ele esteve muito feliz. Não que eu tivesse achado isso estranho, não achava que a tristeza lhe seria natural. Apenas pensei que ele ficaria triste por não restar dúvida de que ela iria embora. No fundo eu sabia que por trás do seu sorriso ele realmente estava, mas não queria que ela percebesse, pois, como ele me disse depois, tinha receio de ela desistir por nós.
No dia de ela partir, fomos deixá-la no aeroporto. Ela havia chorado a noite inteira até adormecer no colo do pai. Seu vôo era cedo, de forma que dormimos pouco, e eu não havia deixado de perceber a ausência de sono ao meu lado o resto da noite. Na hora do embarque foi que eu realmente aceitei que nossa filhinha estava indo embora e que já não cabia mais a nós decidir entre ela ficar ou partir. Quando ela passou pela porta e sumiu da nossa vista, enquanto eu enxugava minhas lágrimas, olhei para meu marido e não vi uma lágrima sequer.
Ao chegarmos em casa, fui fazer qualquer coisa, não lembro bem o quê, e ele foi para a sala e ligou a TV. Depois de um tempo, chamei por ele e ele não respondeu. Olhei para o sofá e estava vazio. Procurei pela casa e o encontrei no quarto dela, sentado em sua cama, ainda desarrumada, segurando um ursinho desses qualquer que ela não conseguia deixar fora da cama. Sentei ao seu lado e pus minha mão sobre a dele e ele chorou contido. Eu apenas o abracei. E eu não percebi, pois não foi preciso. Ele me perguntou: “E quando ela precisar de mim?”.
Depois de alguns anos, entre idas e vindas, nossas e dela, a ausência tornou-se parte da rotina. A maior freqüência de visita dos nossos netos fez com que certos vazios fossem preenchidos. Até o dia em que o telefone tocou e recebemos a notícia que mudava tudo de forma definitiva: ele não era mais o homem mais importante da vida dela.
Quando estávamos no carro eu não soltei sua mão sequer por um momento. Depois de tantos anos, seus cabelos já estavam quase todos brancos e seu corpo mais frágil, e a rapidez com que tudo aconteceu só fez com que ele precisasse muito mais de mim agora do que nunca precisou antes. Eu segurava sua mão e ele olhava o caminho à frente, sem dizer uma palavra qualquer.
Quando chegamos todos já estavam lá. Depois de pouco tempo, quando todos já esperavam, ele a pegou pela mão e entrou orgulhoso, com passos firmes, levando-a pelo braço. Andou toda a distância sem titubear um segundo sequer, sem desmanchar qualquer vez o seu sorriso, enquanto ela caminhava novamente olhando para ele, com os olhos cheios de lágrimas, porém, dessa vez, eles poderiam ficar ali todo o tempo do mundo. Ela não ficaria mais zangada com ele.
À frente, eles estavam lindos, e em todo momento ela olhava para o pai e sorria o sorriso mais lindo possível. Ele apertava minha mão e sorria de volta.
No fim, fomos para o local que receberíamos os amigos e todos falavam conosco, parabenizando-nos por ela estar tão linda. Depois de algum tempo sentamos nos lugares reservados e de onde veríamos sua primeira dança, agora como marido e mulher. Chegava o momento de ela dançar junto ao pai e quando virei para ele para lhe avisar não o encontrei. Tomei um susto e fiquei tentando encontrá-lo, sem sucesso, até que a banda parou de tocar. Minha filha também o procurava, também sem sucesso, até que a banda começou a tocar novamente e meu filho, sorrindo, tocou em meu braço e apontou na direção da banda. Lá esteve meu marido, frágil, com o microfone na mão, em frente a banda, e começou a tocar a música que ele sempre sorria quando ouvia e eu nunca entendia o porquê. Sua voz saiu frágil, demonstrando sua idade:
“Olhe aqui, preste atenção, essa é a nossa canção. Vou cantá-la seja onde for, para nunca esquecer o nosso amor. Nosso amor…”
Senti de repente uma emoção que nunca havia sentido antes e meus olhos no mesmo instante se encheram de lágrimas. Em volta, reações parecidas: garotas com as mãos no rosto; os rapazes dando sorrisos tímidos, mas sinceros; algumas senhoras já com lágrimas nos rostos também e um silêncio absoluto, de forma que aquela voz frágil de repente era tudo o que ouvia.
“Você partiu e me deixou. Nunca mais você voltou pra me tirar da solidão. E até você voltar, meu bem eu vou cantar…”
De repente ele se calou, não conseguia mais dizer qualquer palavra. Seu rosto agora coberto de lágrimas lhe deixava ainda mais frágil, o que ele tentava esconder baixando a cabeça, esforçando-se para concluir a canção, mas não conseguia. Tentei então me levantar para ficar ao lado dele, mas meu filho me segurou pelo braço, e sorrindo, apesar do rosto também coberto de lágrimas, apontou novamente para frente sorrindo. Minha filha caminhava na direção dele e com todo o carinho do mundo tirou o microfone da sua mão, deixou de lado e o abraçou por alguns segundos. Depois levantou sua cabeça, enxugou suas lágrimas e disse baixinho “papai, eu serei sempre a sua garotinha”. A música continuou e os dois ficaram dançando abraçados. O pai e sua garotinha.